Uma crônica sobre a compreensão


Um erro muito comum ao ensinar é subestimar aquilo que o aluno não sabe. Me parece que boa parte da incompreensão em sala de aula tem origem no fato de o professor pressupor conceitos, ideias e regras que o aluno já deveria saber para estar naquela  série. E quando detectamos esses lapsos, nossa reação de surpresa, espanto e até mesmo indignação ("Mas como vc não sabe isso!!?) tende a fechar muitas portas na comunicação educador-educando.

O relato do vídeo a seguir (dezembro de 2014) nos leva a pensar sobre qual o ponto de partida para uma relação realmente produtiva de conhecimento e o tempo e dedicação que isso demanda.
A esse respeito venho tentando praticar uma postura de abertura e boa vontade diante de qualquer coisa que um aluno não saiba, independente de sua idade ou posição; sem juízos de valor.  "Não sabe, vamos aprender."  Infelizmente a dura rotina do sinal sonoro, das avaliações e notas não nos deixa muito tempo para brincar de aprender. Já dizia meu amigo e filósofo Dr. Evandro Brito:  "Quem estuda não tem tempo de aprender"! Ainda assim, é sempre possível falar sobre muitas coisas.

Mas levando o assunto mais para o lado da epistemologia (Teoria do conhecimento), é bastante comum que o professor pressuponha uma simetria de compreensão entre o que é falado por ele e ouvido pelo aluno; ou expresso por um texto e lido pelo aluno. Mas e quando o nível de compreensão fica muito aquém do esperado? Como medir isso?  Será que a ausência de dúvidas significa necessariamente a presença de conhecimento? Ou, no mais das vezes, representa um indicativo de que a compreensão não chegou a níveis mínimos para um diálogo? É preciso que o professor se torne um curioso sobre a compreensão humana, um pesquisador e experimentador da cognição.


Para depois do vídeo:

*ao falarmos sobre o "urbano", perguntei para a menina se ela conhecia alguma cidade grande. Ela disse:   "Florianópolis."  Então comecei a perguntar rápido: "Nunca foi para Porto Alegre, para Curitiba, São Paulo. Rio de Janeiro, Brasília?
Enquanto ela ria, eu disse: "Brasília eu também nunca fui."
 Enquanto seguíamos conversando ela passou a procurar sobre Brasília no computador, deixando de lado o assunto "Japão".

**É claro que se chego em uma sala com um texto ou outro material didático com a mesma mensagem visualizada no site pela menina, os alunos vão lidar com isso de acordo com suas diferentes capacidades de interpretação. Mas o ponto é que o espaço da sala de aula permite essa interação "dissimulada", onde o aluno maneja o material, sem ter realmente consciência do que está fazendo. Como todos estão fazendo o mesmo , o contexto coletivo não permite que o professor se dê conta do quê realmente cada aluno está absorvendo daquilo.  Pense nesse trabalho individual e na realidade de uma sala de aula com 30 a 35 alunos e terá a realidade da educação escolar! (Rousseau talvez esteja se remexendo no caixão!).

Comentários

  1. Primeiro gostaria de parabenizar pelo blog. Me formei em filosofia na unisul e na minha época não tínhamos essa ferramenta. Saudades também do Dante, Grande Mestre.
    Quanto ao vídeo e o relato creio que o que se pode perceber desse fato é o resultado de um investimento de longo prazo pela parcela dominante da população, bourdieunianamente falando, com o intuito de falir o ensino e emburrecer a população, de forma apenas a continuar a formação da mão de obra. Algo que continua a ocorrer de forma cada vez mais e mais eficiente. Caso claro é a reforma do ensino médio proposta pelo atual "governo". A possibilidade de os alunos escolherem se tornar mão de obra mais cedo que o normal é uma afronta a quem pensa. A partir do momento em que se "escolhe" abandonar o currículo geral, que dá uma possibilidade mais alargada de futuro, esse aluno que acredita estar fazendo uma "escolha" na verdade está se condenando a um caminho único, pois se a reforma passar dessa forma em breve se terá que se modificar a forma de acesso a universidade, pois quem fez o currículo profissionalizante não tem como passar no ENEM como ele é hoje, e não tem como acompanhar o curso superior como ele é hoje, logo com a mudança na matriz curricular do nível médio um efeito dominó será lançado sobre todo o modelo de formação posterior onde as peças que caem são os próprios cidadãos. Essa menina de 6 anos é só o resultado de décadas de sucateamento do ensino no país, é o golpe de mestre do dominante sobre os dominados que se quer conseguem ver isso...

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  2. Sem dúvida Klaudio, tenho visto esse "estado" de meus estudantes como um resultado de algo que vem se arrastando desde as séries iniciais. Sem dúvida, o sucateamento da escola pública é um fator condicionante muito importante, mas creio que há outros mais, como a crescente alienação de todos nós em tudo o que estamos fazendo, resultado da fragmentação do conhecimento na era da hiperinformação. Às vezes tenho a impressão de que estamos nos esquecendo o que é ensinar (principalmente a pensar), por conta de um processo automático de ensino já vigente há muito tempo.

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