Mais um dos meus textos derivados de reflexões a partir de situações de aula.
O óbvio e o
título.
A tela do meu computador informa: 23:48. Sinceramente, tentei dormir
logo que cheguei. Até liguei meu sonífero tradicional: a TV. Nada! Aquela
frase: “Não entendi nada”, reverberava no meu íntimo. Ruminei possibilidades...
Enfim, não consegui — a inquietação era grande —, fustiguei o teclado!
Pensei na situação seguinte:
— Não é possível! Pelo menos sobre o que o
texto fala você sabe!
— A verdade.
— Então, você sabe alguma coisa!
— Claro, é o título!.
Será que é claro? Vamos pensar no que está por trás da proposição:
“Claro, isto é o título!”. Primeiro, um menosprezo pelo título. Aqui foi
esquecida uma regra de qualquer manual de redação: “Deixe o título por último.”
Você já se perguntou o por quê desta regra? Vamos a uma situação simples. Um
professor, digamos o de história, solicitou uma pesquisa sobre o Renascimento.
— Ora, é um assunto de História. Vou olhar nos livros de História.
Então, vocês num primeiro momento, folheia o livro. Há vários
capítulos, cada qual com seu título: um Idade
Média. Obviamente, você vai descartá-lo. Por quê?
— É óbvio!
Ora, está resposta não serve. Ela em si é vazia, simplória, não
reflexiva, sem profundidade... Vamos a uma outra pergunta: o que significa as
palavras do título, Idade Média? Sem
entrar no mérito da nomenclatura usada para a classificação histórica, você
recorre a seu repertório, ou seja, ao
conjunto de informações escolares que você tem de etapas anteriores de sua vida
escolar. Por um raciocínio lógico — que chamamos princípio da não-contradição: algo não pode ser ele e sua negação
ou mesmo tempo — você elimina a parte do livro que fala sobre Idade Média, pois — como rege o princípio da não-contradição — Idade Média não é o mesmo que Renascimento. Ora, você está procurando
informações sobre o Renascimento não
sobre a Idade Média, certo?
— Certo. Mas, onde o professor quer chegar com
isto?
Simples. O título lhe deu uma informação, logo ele não deve ser menosprezado.
Votemos a regra do manual de redação. O título deve ser deixado por
último porque, de uma certa forma, ele dá uma idéia sobre o assunto que o texto
desenvolve. Muitos autores gastam bastante tempo escolhendo um título,
exatamente por isto. Um título que não diga muito claramente, do que o texto
está falando pode produzir um efeito contrário ao desejado, ou seja, o de ser
descartado do grupo de textos que podem lhe ajudar na pesquisa.
Segundo, quando você diz que sabe do que o texto está falando. Claro
que você sabe! Você respondeu: “A verdade”.
Eliminando, automaticamente, a sua primeira proposição. Por quê? Devemos
recorrer a lógica, novamente
— Lá vem o professor com lógica, de novo! Eu não sei nada de lógica!
Ledo engano! Você estudou matemática, não? Então você sabe algo sobre
lógica. Quando você diz: “Eu não sei nada”. Isto significa que, quanto a um
dado conhecimento, você é vazio, ou seja, a representação matemática do seu
juízo é: ㇣ ou { }, ou Ø, ou ainda 0.
Quando você responde: “Verdade”, significa que há pelo menos um
elemento no conjunto em questão, ou seja, o conjunto dos conhecimentos sobre o
conteúdo do texto. Dito de outro jeito, o conjunto dos seus conhecimentos
extraído da leitura que você fez. Novamente, cabe o uso do princípio da não-contradição. Como você pode dizer, matematicamente
(logicamente), que um dado conjunto é, ao mesmo tempo, vazio e que há elementos
nele. De duas uma — e agora utilizamos outro princípio lógico: o do terceiro excluído: ou o conjunto é vazio
ou não; não há uma terceira alternativa — ou a primeira proposição é verdadeira
— você não sabe nada — ou é falsa — pois, alguma coisa você sabe —. Bem,
comprovamos que você sabe algo sobre o texto, pois você respondeu uma questão
simples, versando sobre ele.
Este pode ser um ponto de partida. Já falei de Descartes, em outra aula.
— Não lembro, professor!
OK! Foi apenas de passagem. A idéia era a seguinte: de algo conhecido é
possível chegar a algo desconhecido. Ainda estamos no espaço do raciocínio
lógico-matemático.
— Mas, afinal, isto é uma aula de Filosofia ou
de Matemática?
Outro engano seu, há uma grande relação entre certos aspectos da
Matemática com a Filosofia, particularmente, no campo da lógica. Basta ler O que
é lógica da coleção Primeiros passos, com atenção. E
aqui surge um terceiro problema apontado na aula: o raciocínio relacional. Vamos dividir este problema em dois níveis:
primeiro intertextualidade interna —
aquele dentro da própria disciplina de Filosofia—; segundo, intertextualidade externa — aquele entre
a Filosofia e outras disciplinas que estão sendo ministradas neste semestre,
sem falar de informações que vêm de sua vida escolar anterior.
No primeiro caso, devemos entender o movimento até então. Numa aula
inicial, o professor devagou sobre a imagem que alguns fazem dele; a ato de
estudar; as dificuldades apresentadas pelos alunos, quando entram na
Universidade etc. Seguiu-se a isto, na outra semana, a apresentação do Programa da disciplina, a partir do qual
algumas “pistas” de como iria funcionar a disciplina foram dadas. Sempre
enfatizando a importância de habituar-se a consultar o Programa para o planejamento do estudo. Assim sendo, foi dito que
as primeiras aulas, antes de começarmos a parte
instrumental, seriam um ensaio. Por
que um ensaio? O objetivo é apenas
dar um gostinho do que é possível fazer com a Filosofia. Contudo, para não ser
tão pesado escolhi começar com uma poesia. Quem não gosta de poesia! Num
primeiro contato com o texto, foi solicitado o uso do dicionário: para mostrar
que ele é, sim, um instrumento, uma ferramenta de trabalho importante; e que as
palavras têm muitos significados — e no nível semântico a lógica não ajuda
muito —, possibilitando, dependendo do preenchimento dado, variações
interpretativas. Depois deste exercício com o dicionário — que não objetivou a
mera troca de uma palavra por seu sinônimo, no poema; mas, a interpretação mais
consistente do poema — uma aula expositiva tentou marcar que o poema fala da busca da verdade, uma condição do ser humano e da Filosofia. Neste
sentido, em princípio, todos somos filósofos.
— Tá enrolando muito! Onde você quer chegar
com tudo isso? O que tem a ver poema com intratextualidade?
Calma, sem paciência e atenção você não vai entender. Na seqüência do
poema foi solicitada a leitura do texto de Chaui, A verdade. Voltemos a pergunta acima: “Qual a relação entre o poema
de Drummond e o texto de Chaui?” Agora você deve estar um pouco mais
espertinho.
— O título!
— Certo! É um bom começo!
Lembra daquela sua pesquisa de história, no começo do texto? Pois é!
Pense no seguinte. Você encontrou dois ou mais livros com capítulos O renascimento. Agora você está feliz,
encontrou um vasto material sobre o assunto. Ora, a sua seleção se deu por
semelhança. Da semelhança dos títulos você concluiu: complementaridade, ou
seja, se os títulos são iguais eles falam sofre o mesmo assunto. E, aqui, não
precisa ser, necessariamente, sobre o mesmo ponto de vista. Os autores podem —
e devem — ter interpretações diferentes sobre o mesmo assunto. E, é bom mesmo
que tenham. Se tudo fosse igual, o mundo seria muito chato!
— Legal! Tô entendendo!
Ora, mas alguém perguntou:
— Qual a relação deste texto com o poema?
O que está por trás desta pergunta? Que o mecanismo mental de algumas
pessoas tem dificuldade de estabelecer juízos
relacionais simples. Já apresentamos duas relações de semelhança entre os
textos: o título e a ideia de que a verdade surge — usando algumas palavras do
texto — de nossas ansiedades, nossas incertezas, nossa perplexidade, nossa
admiração e espanto — Olha o thauma (aquilo
que deu origem a Filosofia) aí gente! Pena! Alguns já esqueceram... —. O poema
diz, também, que a verdade é multifacetada,
cada um que volta traz apenas uma metade. Faça uma pergunta simples: a que
corresponderia cada metade no texto de Chaui? Ora, o raciocínio da autora diz
que há diversas acepções (sentidos, preenchimentos) para a palavra verdade, remetendo a culturas formadoras de nossa idéia de verdade: a grega, a latina e a
hebraica. Não seriam estas algumas facetas
da verdade?
Será que é tão difícil tirar isto da relação entre os dois textos?
— Ah! O professor falando faz sentido, é muito
legal. Difícil é fazer isso.
— Ah! O professor tem toda uma formação, já
estudou muito. Para o Sr. isso é fácil...
Será que você não está menosprezando sua própria capacidade
intelectual? Será que aquilo que você diz ser óbvio não precisa ser melhor
explorado, por você, para descobrir — a palavra é boa, pois há algo coberto, é
só você retirar o véu — que significa, o que se esconde neste óbvio?
Bom poderia dar outros exemplos
da relação entre os textos e como meus discursos, mesmo aqueles acidentais,
foram construídos em torno do poema e do texto de Chaui. Só um lembrete: estabelecer relações é também indicar
diferenças entre os textos, além de semelhanças e continuidade.
Agora vamos estabelecer relações entre as disciplinas. Vamos escolhe a
de Português. Por uma razão simples: eu estou assistindo às aulas desta
disciplina. Interessante lembrar que tanto eu como a professora Fátima, em
nossas primeiras aulas enfatizamos qual o objetivo da minha presença nas aulas
dela, a saber, procurar, com o passar do tempo, um trabalho em comum. No
entanto, certo dia alguém perguntou:
— O que o Sr. vem fazer nas aulas de Português?
Bem, a memória já foi refrescada.
Passemos a uma rápida — a tela de meu computador já marca 02:36 —
relação entre as duas disciplinas. Não vamos falar de um ponto pacífico,
evidente: sem um domínio mínimo da língua escrita (padrão) nos seus diversos
níveis: sintático, semântico e pragmático fica muito difícil ler um
texto de Filosofia, mesmo que secundário.
Pensemos na estratégia adotada por ambos os professores. Há
semelhanças? Creio que sim. Quando a professora Fátima sugeriu substituir
aquelas palavras estranhas por
outras, ela recorreu ao repertório de
cada um, como também a alguns juízos lógicos-combinatórios. No fundo o
princípio era simples: “Você pode fazer o exercício a partir daquilo que sabe e
do instrumental racional inerente a todos nós”. Ora, você sabe pensar
logicamente. Esta habilidade possibilitou que você correspondesse ao exercício.
Numa segunda etapa, foi solicitado uma redação que desse continuidade ao
preenchimento feito por você. Evidentemente, antes disto a professora
aproveitou a oportunidade para inserir alguns rudimentos teóricos. Para
completar a história era necessário um raciocínio relacional de continuidade, para que a história pudesse fazer
sentido. As apresentações, espontâneas, das redações, demonstraram que estavam
no caminho. Muito boas! Era uma questão de lapidar o texto. Ora, a estratégia
de preenchimento das palavras
desconhecidas por outras, assemelhasse ao uso do dicionário, pois, no
fundo, tanto uma como outra objetiva a re-significação
de um texto, ou seja, que um novo sentido aparecesse a partir do estrato inicial. Para isto, é necessário
buscar, seja no dicionário, seja no
seu repertório mental histórico-cultural,
o sentido. Havia um problema a ser resolvido, para tanto era necessário
pensar e usar o raciocínio lógico e o repertório
semântico. Por que lá (Português) é
possível, aqui (Filosofia) não?
Que tal um pouco mais de atenção e um pouco menos de brincadeira em
alguns casos?
Reconhecer as dificuldades é importante. Contudo, dizer, simplesmente: “Não
sei.”, “Não consigo.”, “Não dá”... é ficar na mesma... Esperar todas as
respostas do professor é o mesmo que arrumar outra muleta e reproduzir velhas atitudes educacionais. Não estou dando
peixes, mas caniços. É necessário, pelo menos, segurá-los por um tempo — não
largá-los logo — para descobrir como usá-los. Aprende-se a nadar, nadando. A
Filosofia é assim não se ensina, apreende-se, no uso de seu principal
instrumento: a razão.
Carlos
Euclides Marques
Madrugada,
entre 22 e 23 de março de 2001.
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