"PRIMAVERA" LETICIANA: EFEMERIDADE E CATARSE
Eis um exercício de crítica de Arte que fiz há algum tempo. Muito tempo!
PRIMAVERA
LETICIANA: EFEMERIDADE E CATARSE
Era uma terça-feira (21/03/2006), pouco antes das vinte horas, quando uma
porta, sutilmente escondida pela escuridão e pela vegetação do jardim de
entrada, abriu-se e alguém disse: — É aqui. Adentrei ao ambiente, com outros
que esperavam. Ainda havia poucas pessoas.
Do lado de dentro, um
corredor-varanda dava os ares de recepção. Nesta, uma porta emoldurava a
entrada de uma sala de exposição. À entrada um pano fazia a serventia de
“tapete”. Os poucos que, neste momento, por ali adentravam, logo se preocupavam
em limpar os calçados. Houve mesmo quem os tirasse. Ares solenes, que se
perderiam, mais tarde, com um número maior de transeuntes.
No centro da sala, com a iluminação
recaindo sobre ela, a “obra”: um bloco de rosas despetaladas e desfolhadas
congeladas, já em estado inicial de degelo. A água corria, compondo uma
micropiscina. Logo lembrei de um texto drummondiano, O recalcitrante,
lido na infância, “... escorria um fio de água que ia compondo, no piso do
ônibus, a microfigura de uma piscina.”
Este elemento, água, primeiramente
em estado sólido, já a liquefazer-se me remeteu à efemeridade da “obra”. Não há
como cair neste lugar comum, o tempo, já apresentado por outros críticos.
Porém, não quero me impregnar com as prévias leituras sobre a artista e sua
obra. É preciso de início: 1- pensar como um espectador sem muitas informações,
mas curioso e preocupado com aquilo que a “obra” pode lhe passar ou dar ou
tocar; 2- deixar, de certa forma, a experiência estética, o contato com a obra
falar aos sentimentos e, quem sabe, a razão ou ainda, e não eliminando estas
perspectivas, o como nos descobrimos no outro posto pela “obra”, trata-se de
partir ou tomar uma alteridade que como objetivação de uma subjetividade não é
já de antemão um nada, nem simplesmente objeto nem simplesmente sujeito, nem
simplesmente um ser percebido nem simplesmente um ser que percebe, mas, diria a
fenomenologia, um sensível-sentido, um visível-visado, uma consciência-corpo,
um corpo-consciência, um transcendente dado na finitude.
O título é Primavera,
provavelmente em função das rosas. Contudo, as quatro estações estão presentes;
o gelo remete ao inverno; o calor e a luz, ao verão; os restos da natureza, ao
outono... O ciclo da vida: nascimento, crescimento, proliferação,
envelhecimento e, conseqüentemente, a morte. Nesse dia, abertura da exposição,
reinava o florescimento, a vida. O leve derretimento trazia consigo o aroma das
rosas. A vivacidade do vermelho-pétala e do verde-folha agraciava narinas e
olhos, suscitando lembranças. Porém, não foi difícil remeter-me a seus
contrários: fedor, morte, desagradável... Famigerada dicotomia! Colocava-me
diante da condição humana: a efemeridade, a morte...
Algumas horas se passaram e o micropiscinado
piso tornou-se outro espetáculo. Além dos efeitos luminosos sobre a água, os já
não tão preocupados passantes — ao esquecimento estava o “tapete” à porta — vão
deixando suas pegadas. Marcas de passantes, que tão logo outros refaçam o
percurso, praticamente, desaparecem. Do amalgama restam, como tudo, mais
sinais. O tempo acelerado continua mostrando-se. Vestígios, vestígios...
Este é o tipo de “obra” que pode ser
capitada por si só. Diriam alguns, fundamentados na perspectiva de Didi-Huberman,
que estou sendo, com esta afirmação, tautológico.
Talvez, sim, mas não só. Quero também passar pela perspectiva da crença. A atitude descritiva, que
caracteriza o exercício tautológico,
e pode ser percebida, em parte, nas primeiras linhas deste escrito, tem por
objetivo descartar um prévio discurso sobre a “obra”, pois isto pode tirar do
espectador um espanto, uma admiração engendradora de reflexão. Contudo,
esta admiração engendradora é
possível, por parte do espectador porquê, também ele, tem uma vivência, que, de alguma forma é tocada pelo visado[1]. Do
contrário, ou seja, com a aceitação prévia e simples da fala de alguém, que se
toma para “entender a obra”, a mataria como possibilidade
ontológica. Evidentemente, que sempre matamos a obra em-si: seja quando falamos dela, seja mesmo quando a visamos. Porém
quero ponderar a morte que vivifica, a ausência-presentificante,
pois é isto que faz da arte algo de revelador da condição humana[2]. A conversa
com a artista a posteriori só fez, em grande parte, reforçar algumas
inferências que partiram da experienciação da/com a “obra”. Mesmo assim, faz
sentido ater-me em algumas passagens.
Roberto Freitas, proprietário do
aconchegante ambiente — ARCO, na Avenida Madre Benvenuta, 1205, Santa Mônica —
fez as honras da casa, apresentando a artista Letícia Cardoso. Inicia falando
sobre o espaço completar dois anos e de o convênio com SESC, um ano. Lembra que
a artista foi sua colega de graduação e, dentre todos da turma, era a que
realmente pintava. Vi esta fala como significativa, pois me remeteu a questionar:
o que haveria de pintura neste trabalho? Sabe-se ser a cor o principal elemento
da pintura. Ora, é a cor viva que, neste primeiro momento, se apreende, mas a
cor viva também é uma ilusão. Seus tons mórbidos, certamente, aparecerão no
processo de deterioração da matéria orgânica, assim como no chão-palheta as
cores das pegadas vão sendo misturadas como o pintor misturando suas tintas.
Na fala da artista o que ficou claro
foi sua angústia quanto ao incontrolável de seu processo artístico, “o ter que
lidar com o depois”. A mesma sensação deixada pela “obra”: primeiro o deslumbre,
por suas vivas cores e seu efeito luz-água; depois, a inquietação, por saber
que tudo degenerará em seus contrários... É a própria condução humana posta.
Sua fragilidade diante do ciclo das coisas. Sua efemeridade... Sua arrogância,
por colocar-se acima de tudo, por arrogar-se a razão do universo...
A respeito do título, Letícia
remete-o a sua experiência do início do processo, ao peso dos momentos de
academia e a estação na qual, em Porto Alegre , recolhia folhas e flores para uma
primeira experiência. Vejo, então, ser a situação vivencial, de um dado momento,
que leva a artista a nomear sua “obra” e não propriamente a “obra” em seu “processo
de exposição”. Primavera é uma metonímia, para mim, por razões já expostas
acima. Prova de que já o nomear é, como vimos nas últimas aulas, um matar.
Trata-se de uma “obra” catártica,
pois conduz à reflexão[3]. Para um
espectador pouco dado a isto, há, no primeiro momento, a beleza — no seu
sentido coloquial —; depois, provavelmente — são especulações, já que não fui
outro dia à exposição —, a náusea visual e olfativa, ou seja, há uma condição
estética, no seu sentido mais básico que remete a um tentar fixar um já findo,
de eternizar um já morto. Muitos dos colegas que comentaram sua
experiência-vivência, interpretaram — atitude
da crença — o bloco de gelo como um caixão; a porta de entrada da sala de
exposição como a passagem e o ato de caminhar entorno do bloco e parar para
observá-lo como um ritual fúnebre. Tomo uma fala de Didi-Huberman:
Pois essa porta permanece diante de nós para que não
atravessemos seu liminar, ou melhor, para que temamos atravessá-lo, para que a
decisão de fazê-lo seja sempre diferida. E nessa différance se mantém — se suspende — todo o nosso olhar, entre o desejo de passar, de atingir o alvo, e o
luto interminável, como que
interminavelmente antecipado, de jamais ter podido atingir o alvo.[4]
Notei que inicialmente as pessoas tinham receio de transpor a porta da
sala de exposição, embora fosse apenas um arco e aberto, havia, por parte de
alguns, uma atitude aurática à maneira
da apontada por Benjamin[5], um valor de culto que permanece mesmo em
uma “obra” efêmera. Mas continua Didi-Huberman:
Permanecemos à orla como diante desses túmulos egípcios
que, em cada canto de seus labirintos, figuram apenas portas, ainda que só
ergam diante de nós o obstáculo concreto, calcário, de sua imortalidade
sonhada. Nessa situação, somos ao mesmo tempo forçados a uma passagem que o
labirinto decidiu por nós, e desorientados diante de cada signo da orientação.
Estamos de fato entre um diante e um
dentro. E essa desconfortável postura define toda a nossa experiência,
quando se abre em nós o nos olha no que vemos.[6]
Tal
é a situação que põe o questionamento: por que um bloco de pétalas e folhas
congeladas — atitude tautológica —
leva o espectador ao transcendente — atitude
da crença? Algo está ali, pedindo que o decifremos, sua decifração está
posta no próprio objeto ou no sujeito que o vê ou, ainda, em nenhum destes
lugares ou nos dois ao mesmo tempo? Didi-Huberman mostra que nossas visadas da
obra são sempre uma crença: a crença na objetividade e a crença na
subjetividade, no transcendente. A leitura da obra, embora não dê conta de sua
totalidade possível, é, na posição do autor, uma dialética dos contrários. O autor tem diferentes fontes teóricas
que o fundamentam, entre elas a fenomenologia merleau-pontiana a qual recorri,
geralmente, indiretamente. São discursos da herança contemporânea, de uma
filosofia da ruptura. Ruptura com o legado cartesiano e, em certos
aspectos, também o empirista.
Didi-Huberman aproxima-se dos céticos contemporâneos que, não tendo como
encontrar o fundamento último de algo, põem as teses fundamentalistas em questão
e procuram investigar mais e mais qual o sentido de algo. Isto os leva à
multiplicidade das facetas possíveis, A isto que é a condição humana, diriam os
fenomenôlogos: a intencionalidade...
Outrora quando do meu primeiro escrito sobre a exposição de Letícia
Cardoso, ao final, recomendei: “Resta contemplá-la. Vá vê-la, se possível
esqueça meu discurso, e corra o risco de ser afetado.” Mas isto já não é
possível, pois ela não existe mais... Ou tavez por isto mesmo agora exista...
Ilha
de Santa Catarina, últimos suspiros da tarde de 04 de dezembro de 2006.
Carlos Euclides Marques
[1]
Lembrando Merleau-Ponty, ao dizer que a visão é uma espécie de toque.
[2]
Aqui estaria tendendo pela a atitude da
crença.
[3] Poderia
brincar com as palavras e dizer tautologicamente
que os espectadores, por diversas vezes, se retiram
diante da “obra”. Contudo, a reflexão não é mais um simples dobrar-se
sobre. É já uma consciência da
consciência, diriam os fenomenôlogos e, aqui, em espacial Merleau-Ponty.
[4]
George DIDI-HUBERMAN, O que vemos, o que
nos olha, p. 232.
[5]
Didi-Huberman fala disto na obra supracitada, passim.
[6]
Ibid., p. 232-4.
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