RESENHA
Carlos Euclides Marques


FONTE:
LICHTENSTEIN, Jaqueline (org.) A pintura — vol. 2: A teologia da imagem e o estatuto da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004.

       João Damasceno, em seu Discurso apologético contra os que rejeitam as imagens sagradas, do qual temos, aqui, um fragmento selecionado por Jaqueline Lichtenstein (et. al.), procura — como o próprio título sugere — contrapor-se aos iconoclastas, tentado resolver certo tipo de paradoxo da teologia estética medieval, a saber, se Deus é incognoscível, imaterial, atemporal como podemos representá-lo? E mas, se as Escrituras apresentam alguns imperativos categóricos proibitivos quanto a adorar e representar o Divino a partir de imagens, por que os cristãos romanos — católicos e ortodoxos — usam de imagens para representar o divino?

João Damasceno, como salienta o texto de apresentação ao fragmento, escreve contra o decreto de Leão III, que proibia o uso de ícones. Inicialmente, o Santo Doutor apresenta algumas passagens das Escrituras que proíbem a representação e adoração de imagens. Para um leitor um pouco desatento ele parece, neste ponto inicial, concordar com os iconoclastas. Mas logo perceber-se-á que somente à natureza — substância, essência primeira — divina é que se aplica esta impossibilidade. “Certamente a natureza carnal não pode ser divinizada, pois uma vez que o Verbo, feito carne, permaneceu imutável em si mesmo, assim a carne transforma-se no Verbo sem que suas qualidades sejam aniquiladas, mas em tudo se identifica com o Verbo por virtude da hipóstase.” (p. 28) É a partir da hipóstase que, para Damasceno, justifica-se a possibilidade de representar o Divino. Na seqüência, o autor atenta para necessidade de melhor interpretar o que querem dizer as Escrituras. Disto tira um argumento importante: “... o único objetivo é não louvar a criatura em detrimento do Criador e de não agir segundo uma prosternação adoradora, que somente ao Criador é devida.” (p. 30). Assim, conclui preliminarmente: “... devido a idolatria que o uso de iconografia foi abolido...” (ibid.). Isto leva o Santo Doutor a diferenciar prosternar-se de adorar e, partindo disto, a justificar a figuração (ícone) a partir da representação da manifestação do Divino. Pois, embora a essência do Divino seja inalcançável, Ele se manifesta nas e pelas coisas por Ele criadas. Esta tese será largamente difundida na tradição Escolástica e terá, mais tarde, em São Tomás de Aquino seu grande sistematizador.
Parte, então, para a definição de imagem. Para o Santo Doutro, ela é “... uma semelhança feita a partir de um modelo com o qual e para o qual difere em algumas coisas, pois certamente não identifica-se completamente com o arquétipo.” (p. 32), Assim, ele categoriza deferentes tipos de imagens: a natural, a das coisas previstas por Deus, as simbólicas, as das coisas por vir e os ícones. Fecha, então, seu primeiro bloco de argumentação e contra-argumentação falando dos diferentes modos de prosternação e se Deus contradiz-se. Evidentemente, a esta última questão o autor apresenta uma negativa. E tomando outras passagens das Escrituras, onde Deus recomenda formas de plasmar os querubins — figuras criadas por Ele — indica que Deus não proibiu a construção de ícones.
Numa segunda parte, Damasceno retoma os argumentos até aqui trabalhados de forma mais sistemática, dividindo este em sobre a imagem e sobre a prosternação. Para cada qual apresenta cinco tópicos, retomando e complementando a tratativa anterior. Cabe esclarecer que o fragmento em questão só vai até o quarto tópico sobre a imagem. Transcrevo os títulos dos tópicos, pois são sugestivos e, de fato, sintetizam a problemática tratada: “Primeiro: o que é uma imagem; segundo: de que se nos vale aproveitar fabricar uma imagem; terceiro quantos tipos de imagens existem; quarto: o que pode ser representado por uma imagem e o que não pode; quinto: quem primeiro construiu imagens.” (p. 38) Este último, conforme já foi dito não aparece desenvolvido no trecho selecionado.
Cabe salientar, que falei de um texto (fragmento) que compõem uma obra maior — A pintura —, dividida em quatorze livrinhos, dos quais oito já foram publicados pela editora 34. Trata-se de obra de grande importância para aqueles que desejam adentrar nas questões estéticas ou de teoria da arte, em particular tomando os problemas da pintura, mas não só. No caso do volume dois — A teologia da imagem e o estatuto da pintura —, onde encontramos o fragmento resenhado, agradará, particularmente, àqueles estudiosos ou curiosos sobre o problema da estética teológica, ou melhor, a disputa entre iconoclastas e filoclastas. E, mesmo que apenas por fragmentos, é sempre bom visitar os textos originários. Boa leitura!

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