Esclarecimento como condição para uma liberdade consciente, por Eric de Souza Pires

Na Unidade de aprendizagem "Reflexão sobre o Homem na Filosofia", propus uma reflexão que tomasse alguns filmes previamente listados e algumas concepções antropológico-filosófica, Estou estimulando a publicação neste espaço de alguns dos ensaios produzidos. Eis o primeiro.

Esclarecimento como condição para uma liberdade consciente
Eric de Souza Pires[1]
                                                                                                                     

Introdução

            Este trabalho pretende apresentar uma breve resenha dos filmes A Onda (2008) e Kids (1994), escolhidos para servir como base para algumas considerações de caráter filosófico acerca da condição da existência humana. Os acontecimentos referidos em A Onda serão analisados à luz de um pequeno artigo de Immanuel Kant, enquanto que Kids será examinado sob a ótica desse mesmo texto e de outro também muito conhecido, de autoria de Jean-Paul Sartre.


Desenvolvimento

De acordo com a Wikipédia (2017), o filme A Onda, produzido na Alemanha em 2008, é a versão cinematográfica de um experimento realizado em 1967 por Ron Jones, professor de História em uma escola secundária de Palo Alto, Califórnia. No filme, Rainer Wenger, um professor de Ciências Políticas, é designado para realizar um projeto com duração de uma semana, ao longo do qual o tema “autocracia” seria discutido em uma classe de alunos previamente inscritos. Logo que ele menciona o nazismo como exemplo de ideologia adotada por um governo autocrático, a turma manifesta desinteresse, pois todos consideram impossível que tal regime se repetisse na atualidade.
Diante desse posicionamento, o professor assume uma postura rígida e impõe que os alunos se sentem com as costas retas, realizem uma série de exercícios respiratórios e se levantem toda vez que quiserem dizer algo. Dois ou três que não concordam com as regras são sumariamente excluídos da disciplina. Durante o resto da aula, o professor, que a partir de então deveria ser chamado por todos de Sr. Wenger, passa a discorrer acerca da importância da disciplina em qualquer regime ditatorial.
No dia seguinte, uma terça-feira, são realizados exercícios em conjunto com intuito de formar uma unidade e de acabar com os grupinhos. A turma deveria mostrar-se coesa porque “união é poder”. No terceiro dia do projeto, alunos que não estavam matriculados, mas que tomaram conhecimento das dinâmicas pouco convencionais das aulas, pedem para participar. São escolhidos um uniforme e um nome para o grupo (A Onda) e, inspirados pelo bordão “Ação é poder”, os participantes decidem utilizar seu tempo e habilidades pessoais para produzir um site e uma logo para o grupo, que é espalhada por vários locais públicos da cidade por meio de adesivos e de pichação.
Na quinta-feira, criam uma saudação ao estilo nazista, ao mesmo tempo em que discriminam os demais alunos da escola que não fazem parte d’A Onda. Na sexta, o professor, um tanto assustado com as dimensões que a experiência está tomando, pede que elaborem uma redação sobre o que vivenciaram ao longo daquela semana.
Por fim, no último dia, Wenger reúne os participantes em um auditório e discursa, para uma turma assustada e incrédula, sobre o quanto eles se deixaram levar pela mesma ideologia que tornou possível o surgimento do nazismo numa nação que outrora também caiu na armadilha, ludibriada por um ditador que pregava uma pretensa superioridade racial ariana.
Difícil resistir à tentativa de relacionar a experiência de Palo Alto, retratada no filme A Onda, com o texto Resposta à pergunta: “O que é o Esclarecimento”, de Immanuel Kant. Os alunos, que inicialmente consideravam o nazismo como um anacronismo, acabam se deixando dominar pela personalidade ao mesmo tempo carismática e firme do Sr. Wenger, que, utilizando técnicas simples, consegue fomentar união onde antes só havia indivíduos isolados ou pequenos grupos esparsos. Ele sabe que a necessidade de pertencer a uma comunidade, de fazer parte de um coletivo, natural no ser humano, é ainda mais forte nos adolescentes. Isso fica claro quando um deles, em uma festa logo no início do filme, diz para outro: “O que falta para a nossa geração é um objetivo comum para unir a gente” (A ONDA, 2008). No entanto, desejar um objetivo não significa ser capaz de escolher um. Para tal é preciso que se tenha saído da menoridade, termo cunhado por Kant para designar a incapacidade que algumas pessoas têm de pensar por si mesmas, sem a direção de alguém. E, de acordo com o filósofo alemão, “o homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem para servir-se de si mesmo [...]” (KANT, 2009, p. 63).
Ao aceitarem sem reservas a direção autocrática do professor (um dos alunos, inclusive, se voluntaria para ser seu guarda-costas), ao se submeterem cegamente às regras por ele impostas como condição para fazer parte de um grupo sectário, intolerante e exclusivista, os alunos demonstraram que ainda não adquiriram a competência necessária para agir livremente. Infelizmente, o caso apresentado no filme não constitui exceção, pois, conforme afirma Kant (2009, p. 64-65), “são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura”.

O enredo de Kids é bem mais simples que o de A Onda, embora não menos dramático. O filme se passa em meados dos anos 1990 e mostra um dia na vida de um grupo de adolescentes moradores da periferia de Nova York. Ociosos, sem objetivos, perspectiva ou mesmo esperança, adotam um comportamento violento e praticam uma série de atividades autodestrutivas, como sexo sem proteção e consumo indiscriminado de drogas.
Nesse contexto, Ruby, uma jovem de dezessete anos que já havia tido nove parceiros sexuais, vai a um posto de saúde realizar o teste de HIV. Apesar da promiscuidade em que vive, o resultado dá negativo. No entanto, o teste de Jennie, um ano mais nova e que foi apenas acompanhar a amiga, dá positivo, apesar de só ter transado uma única vez.
O drama segue mostrando uma sequência de atitudes irresponsáveis e inconsequentes praticadas por esses adolescentes e até por seus irmãos, ainda crianças, no intuito de fruir um gozo de prazeres desenfreados em plena época de recrudescimento da AIDS. Entre os jovens se destaca Telly, o rapaz que havia infectado Jennie e que, ao longo do filme, ainda irá transmitir o vírus para mais duas garotas.
Talvez fosse possível enquadrar Kids na mesma linha da abordagem anterior, ou seja: jovens que, na condição de menoridade, não estariam aptos a orientarem suas próprias vidas. Haveria, contudo, necessidade de uma adaptação significativa: o líder dirigente não estaria mais encarnado na figura de uma única pessoa, uma vez que o próprio grupo passaria a assumir essa função. Em outras palavras, seria como se o indivíduo, ao entrar em contato com o grupo, deixasse de ser um sujeito específico e se tornasse um elemento autômato, submisso às diretrizes de uma coletividade dominadora capaz de destituir de consciência, raciocínio ou vontade cada um de seus membros. Nessa situação, o sujeito assume a conduta que ele acha que o grupo espera dele, ao mesmo tempo em que cobra dos demais integrantes uma postura semelhante. Carentes de esclarecimento, tornam-se vítimas de um terrível ciclo vicioso, no qual todos assumem simultaneamente o papel de dirigentes e dirigidos.
O existencialismo parece ser um viés alternativo para examinar as questões que o filme apresenta. Para Sartre (2014, p. 53), o homem “não está feito de antemão, mas se faz escolhendo a sua moral”. A moral escolhida pelos protagonistas de Kids é o hedonismo puro e simples. É isso que o grupo espera deles e o que eles esperam fazer de si mesmos: gozar a vida ao máximo, sem limites. Ao encarregar-se de seu próprio destino, o grupo estaria vivendo uma vida autêntica, conforme os princípios existencialistas. No entanto, ao mesmo tempo em que Sartre afirma que a liberdade é inerente à condição humana, alerta para o fato de que, “uma vez lançado no mundo, [o homem] é responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 2014, p. 33). A triste situação de Jennie espelha bem esse ponto: se o homem é livre para integrar um grupo no qual o comportamento desvairado é a norma, deverá arcar com as consequências funestas que dele possam advir.


Considerações Finais

            Da mesma forma que os dois filmes abordados nesse trabalho retratam situações graves e ainda muito presentes em nossa sociedade – a falta de esclarecimento e a liberdade insensata da maioria da população –, as ideias fundamentais que Kant e Sartre defendem nos textos citados parecem se complementar. O filósofo alemão aponta para a necessidade (e a dificuldade) que tantas pessoas têm de emergir da direção limitadora de algum tutor. De sua parte, o pensador francês sustenta que a liberdade é inerente ao ser humano, mas chama a atenção para a responsabilidade que dela decorre. Ora, se caberá a cada indivíduo a responsabilidade pelo uso que fizer de sua liberdade, nada melhor que escolher com critério as atitudes que vai tomar. E para fazer uma boa escolha é preciso que seja capaz de usar a razão, ou seja: de refletir, julgar e, acima de tudo, de pensar por si mesmo.


Referências

A ONDA. Diretor: Dennis Gansel. Produtor: Christian Becker, Niina Maag, Anita Schneider. Munique: Constantin Film, 2008. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QBKEi8qamKM>. Acesso em: 25 mar. 2017.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “O que é o Esclarecimento”. In: ______. Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 2009. cap. 4, p. 63-71.

KIDS. Diretor: Larry Clark. Produtor: Gus Van Sant. Santa Monica: Miramax, 1994. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Kk5kQKjhKhs>. Acesso em: 25 mar. 2017.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes, 2014.

WIKIPÉDIA. A terceira onda. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Terceira_Onda>. Acesso em: 27 mar. 2017.


[1] Acadêmico do curso de Filosofia da UnisulVirtual.


Comentários

  1. Oi Eric.
    Muito bom o texto. Eis porque solicite para publicação. Você tem outros?

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