Esclarecimento como condição para uma liberdade consciente, por Eric de Souza Pires
Na Unidade de aprendizagem "Reflexão sobre o Homem na Filosofia", propus uma reflexão que tomasse alguns filmes previamente listados e algumas concepções antropológico-filosófica, Estou estimulando a publicação neste espaço de alguns dos ensaios produzidos. Eis o primeiro.
WIKIPÉDIA. A
terceira onda. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Terceira_Onda>. Acesso em: 27 mar. 2017.
Esclarecimento como condição para uma liberdade consciente
Eric de Souza Pires[1]
Introdução
Este
trabalho pretende apresentar uma breve resenha dos filmes A Onda (2008) e Kids
(1994), escolhidos para servir como base para algumas considerações de caráter
filosófico acerca da condição da existência humana. Os acontecimentos referidos
em A Onda serão analisados à luz de
um pequeno artigo de Immanuel Kant, enquanto que Kids será examinado sob a ótica desse mesmo texto e de outro também
muito conhecido, de autoria de Jean-Paul Sartre.
Desenvolvimento
De acordo com
a Wikipédia (2017), o filme A Onda,
produzido na Alemanha em 2008, é a versão cinematográfica de um experimento
realizado em 1967 por Ron Jones, professor de História em uma escola secundária
de Palo Alto, Califórnia. No filme, Rainer
Wenger, um professor de Ciências Políticas, é designado para realizar um
projeto com duração de uma semana, ao longo do qual o tema “autocracia” seria
discutido em uma classe de alunos previamente inscritos. Logo que ele menciona
o nazismo como exemplo de ideologia adotada por um governo autocrático, a turma
manifesta desinteresse, pois todos consideram impossível que tal regime se
repetisse na atualidade.
Diante desse
posicionamento, o professor assume uma postura rígida e impõe que os alunos se
sentem com as costas retas, realizem uma série de exercícios respiratórios e se
levantem toda vez que quiserem dizer algo. Dois ou três que não concordam com
as regras são sumariamente excluídos da disciplina. Durante o resto da aula, o
professor, que a partir de então deveria ser chamado por todos de Sr. Wenger,
passa a discorrer acerca da importância da disciplina em qualquer regime
ditatorial.
No dia
seguinte, uma terça-feira, são realizados exercícios em conjunto com intuito de
formar uma unidade e de acabar com os grupinhos. A turma deveria mostrar-se
coesa porque “união é poder”. No terceiro dia do projeto, alunos que não
estavam matriculados, mas que tomaram conhecimento das dinâmicas pouco
convencionais das aulas, pedem para participar. São escolhidos um uniforme e um
nome para o grupo (A Onda) e, inspirados pelo bordão “Ação é poder”, os
participantes decidem utilizar seu tempo e habilidades pessoais para produzir
um site e uma logo para o grupo, que é espalhada por vários locais públicos da
cidade por meio de adesivos e de pichação.
Na
quinta-feira, criam uma saudação ao estilo nazista, ao mesmo tempo em que
discriminam os demais alunos da escola que não fazem parte d’A Onda. Na sexta,
o professor, um tanto assustado com as dimensões que a experiência está
tomando, pede que elaborem uma redação sobre o que vivenciaram ao longo daquela
semana.
Por fim, no
último dia, Wenger reúne os participantes em um auditório e discursa, para uma
turma assustada e incrédula, sobre o quanto eles se deixaram levar pela mesma
ideologia que tornou possível o surgimento do nazismo numa nação que outrora
também caiu na armadilha, ludibriada por um ditador que pregava uma pretensa
superioridade racial ariana.
Difícil
resistir à tentativa de relacionar a experiência de Palo Alto, retratada no
filme A Onda, com o texto Resposta à pergunta: “O que é o
Esclarecimento”, de Immanuel Kant. Os alunos, que inicialmente consideravam
o nazismo como um anacronismo, acabam se deixando dominar pela personalidade ao
mesmo tempo carismática e firme do Sr. Wenger, que, utilizando técnicas
simples, consegue fomentar união onde antes só havia indivíduos isolados ou
pequenos grupos esparsos. Ele sabe que a necessidade de pertencer a uma
comunidade, de fazer parte de um coletivo, natural no ser humano, é ainda mais
forte nos adolescentes. Isso fica claro quando um deles, em uma festa logo no
início do filme, diz para outro: “O que falta para a nossa geração é um
objetivo comum para unir a gente” (A ONDA, 2008). No entanto, desejar um
objetivo não significa ser capaz de escolher um. Para tal é preciso que se
tenha saído da menoridade, termo
cunhado por Kant para designar a incapacidade que algumas pessoas têm de pensar
por si mesmas, sem a direção de alguém. E, de acordo com o filósofo alemão, “o homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e coragem para servir-se
de si mesmo [...]” (KANT, 2009, p. 63).
Ao aceitarem
sem reservas a direção autocrática do professor (um dos alunos, inclusive, se
voluntaria para ser seu guarda-costas), ao se submeterem cegamente às regras
por ele impostas como condição para fazer parte de um grupo sectário,
intolerante e exclusivista, os alunos demonstraram que ainda não adquiriram a
competência necessária para agir livremente. Infelizmente, o caso apresentado
no filme não constitui exceção, pois, conforme afirma Kant (2009, p. 64-65),
“são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio
espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura”.
O enredo de Kids é bem mais simples que o de A Onda, embora não menos dramático. O
filme se passa em meados dos anos 1990 e mostra um dia na vida de um grupo de
adolescentes moradores da periferia de Nova York. Ociosos, sem objetivos,
perspectiva ou mesmo esperança, adotam um comportamento violento e praticam uma
série de atividades autodestrutivas, como sexo sem proteção e consumo
indiscriminado de drogas.
Nesse
contexto, Ruby, uma jovem de dezessete anos que já havia tido nove parceiros
sexuais, vai a um posto de saúde realizar o teste de HIV. Apesar da
promiscuidade em que vive, o resultado dá negativo. No entanto, o teste de
Jennie, um ano mais nova e que foi apenas acompanhar a amiga, dá positivo, apesar
de só ter transado uma única vez.
O drama segue
mostrando uma sequência de atitudes irresponsáveis e inconsequentes praticadas
por esses adolescentes e até por seus irmãos, ainda crianças, no intuito de
fruir um gozo de prazeres desenfreados em plena época de recrudescimento da
AIDS. Entre os jovens se destaca Telly, o rapaz que havia infectado Jennie e
que, ao longo do filme, ainda irá transmitir o vírus para mais duas garotas.
Talvez fosse
possível enquadrar Kids na mesma
linha da abordagem anterior, ou seja: jovens que, na condição de menoridade,
não estariam aptos a orientarem suas próprias vidas. Haveria, contudo,
necessidade de uma adaptação significativa: o líder dirigente não estaria mais
encarnado na figura de uma única pessoa, uma vez que o próprio grupo passaria a
assumir essa função. Em outras palavras, seria como se o indivíduo, ao entrar
em contato com o grupo, deixasse de ser um sujeito específico e se tornasse um
elemento autômato, submisso às diretrizes de uma coletividade dominadora capaz
de destituir de consciência, raciocínio ou vontade cada um de seus membros.
Nessa situação, o sujeito assume a conduta que ele acha que o grupo espera
dele, ao mesmo tempo em que cobra dos demais integrantes uma postura
semelhante. Carentes de esclarecimento, tornam-se vítimas de um terrível ciclo
vicioso, no qual todos assumem simultaneamente o papel de dirigentes e
dirigidos.
O
existencialismo parece ser um viés alternativo para examinar as questões que o
filme apresenta. Para Sartre (2014, p. 53), o homem “não está feito de antemão,
mas se faz escolhendo a sua moral”. A moral escolhida pelos protagonistas de Kids é o hedonismo puro e simples. É
isso que o grupo espera deles e o que eles esperam fazer de si mesmos: gozar a
vida ao máximo, sem limites. Ao encarregar-se de seu próprio destino, o grupo
estaria vivendo uma vida autêntica, conforme os princípios existencialistas. No
entanto, ao mesmo tempo em que Sartre afirma que a liberdade é inerente à
condição humana, alerta para o fato de que, “uma vez lançado no mundo, [o
homem] é responsável por tudo o que faz” (SARTRE, 2014, p. 33). A triste
situação de Jennie espelha bem esse ponto: se o homem é livre para integrar um
grupo no qual o comportamento desvairado é a norma, deverá arcar com as
consequências funestas que dele possam advir.
Considerações Finais
Da mesma forma que
os dois filmes abordados nesse trabalho retratam situações graves e ainda muito
presentes em nossa sociedade – a falta de esclarecimento e a liberdade insensata
da maioria da população –, as ideias fundamentais que Kant e Sartre defendem
nos textos citados parecem se complementar. O filósofo alemão aponta para a
necessidade (e a dificuldade) que tantas pessoas têm de emergir da direção
limitadora de algum tutor. De sua parte, o pensador francês sustenta que a
liberdade é inerente ao ser humano, mas chama a atenção para a responsabilidade
que dela decorre. Ora, se caberá a cada indivíduo a responsabilidade pelo uso
que fizer de sua liberdade, nada melhor que escolher com critério as atitudes
que vai tomar. E para fazer uma boa escolha é preciso que seja capaz de usar a
razão, ou seja: de refletir, julgar e, acima de tudo, de pensar por si mesmo.
Referências
A ONDA. Diretor: Dennis Gansel. Produtor: Christian Becker,
Niina Maag, Anita Schneider. Munique: Constantin Film, 2008. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QBKEi8qamKM>. Acesso em: 25 mar. 2017.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “O que é o
Esclarecimento”. In: ______. Textos
seletos. Petrópolis: Vozes, 2009. cap. 4, p. 63-71.
KIDS. Diretor: Larry
Clark.
Produtor: Gus
Van Sant. Santa Monica: Miramax, 1994. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=Kk5kQKjhKhs>. Acesso em: 25 mar. 2017.
SARTRE, Jean-Paul. O
existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes, 2014.
Oi Eric.
ResponderExcluirMuito bom o texto. Eis porque solicite para publicação. Você tem outros?